ATENÇÃO: O texto pode conter citações
sobre o desenrolar do filme. Caso não tenha visto o
filme ainda, tenha cuidado ou o leia após
assisti-lo.
Mundana, A (A Foreign Affair, 1948)
Estreia oficial: 20 de agosto de 1948
IMDb
Billy Wilder ficou conhecido internacionalmente tanto pelas grandes obras-prima que concebeu, como "Crepúsculo dos Deuses" (1950), "Quanto Mais Quente Melhor' (1959) e "Pacto de Sangue" (1944); quanto pelas ótimas comédias, sempre cínicas e provocativas. Este "A Mundana" (péssimo, mas péssimo mesmo, título nacional!) pode até não se enquadrar no primeiro grupo, mas definitivamente entra para o segundo.
Há que se considerar que o filme foi feito em 1948 - com a Segunda Guerra Mundial tendo terminado há cerca de três anos, e suas 'feridas' e destroços ainda totalmente escancaradas, além do fato de os norte-americanos serem 'os heróis' da guerra; dito isto, a produção torna-se até mais ousada do que parece à primeira vista, já que o roteiro de Wilder, Charles Brackett e Richard L. Breen é uma ácida sátira à moral estadunidense.
O roteiro tampouco poupa acusações sobre os alemães (também há que se levar em conta que Wilder era judeu, e muitos de sua família morreram durante a Segunda Guerra), ainda que os fascinates olhos de Marlene Dietrich desafiem-nos (a nós, espectadores) a julgar a ela e a seu povo. Pois como ela mesmo diz em um momento do filme: "Ainda estamos destruídos demais para sermos solidários".
Mas vamos à trama: Phoebe Frost (Jean Arthur) é uma congressista dos Estados Unidos que, junto com um grupo de congressistas, vai a Berlim para analisar a conduta moral dos soldados norte-americanos. Durante tal inspeção, ela acaba descobrindo que um oficial estadunidense tem um caso com uma cantora de cabaré ex-filiada ao partido nazista, Erika von Schluetow (Dietrich). Acontece que a congressista será auxiliada em sua invertigação pelo capitão John Pringle (John Lund), justamente o oficial a quem procura, e que, para tentar despistá-la e dissuadi-la de sua missão, tentará seduzi-la.
John Lund empresta cinismo e a dose certa de mau caratismo ao capitão Pringle. Apenas para ilustrar, ele é capaz de trocar no mercado negro um bolo de aniversário (que Phoebe Frost trouxe dos EUA enviado por uma antiga namorada dele) por um colchão para Erika. Não consigo imaginar um presente menos sutil e significativo. Lembrem-se que, nessa época, Hollywood ainda encontrava-se sob a severa conduta do Código Hays que pregava toda e qualquer 'preservação' dos bons costumes, não se podia, por exemplo, mostrar - e nem mesmo insinuar - qualquer tipo de relação sexual entre os personagens. Claro que o 'bom e velho' Wilder (assim como muitos outros diretores faziam) usava de cinismo e inteligência para driblar tal código (como o exemplo que acabei de citar).
Tal crítica à 'ilibada' moral estadunidense também está na caracterização da personagem de Jean Arthur: seus figurinos e penteados são extremamente duros e puritanos, em contraponto à sensualidade e feminilidade que exalava de Marlene Dietrich. O único momento em que Phoebe torna-se mais 'feminina' é justamente quando compra um vestido alemão, mais ousado, e acaba se soltando de suas 'amarras morais' ao beber champagne em um cabaré. É Wilder alfinetando mais uma vez, como que mostrando todo o embuste contido na tão alardeada moral americana (e que ainda vemos hoje em dia, não só nos filmes).
E Jean Arthur compõe sua Phoebe Frost com o ar necessário de puritanismo, pragmatismo e organização, sem cair na armadilha de deixá-la antipática ao público. A cena em que sua personagem é apresentada ilustra bem isso: sobrevoando Berlim no avião que está levando os congressistas até lá, ela, com uma meticulosa calma, guarda seus óculos e pertences para só depois dirigir-se à janela para ver a cidade em ruínas. A graça da cena dá-se pelo contraste: de um lado a paciência da personagem, de outro, a pressa do espectador em vê-la progredir em suas ações.
Mas o filme é mesmo de Marlene Dietrich. É como se ela possuísse um íma que atrai todo e qualquer olhar. Ela é a senhora absoluta das cenas em que aparece. Sua Erika não é uma mulher romântica (como a sua 'rival' estadunidense), ela é uma sobrevivente. E, para continuar assim, faz qualquer tipo de acordo, como o relacionamento que mantém com o capitão Pringle. Não há romance entre eles (e a cena na qual conhecemos Erika demonstra isso: quando John chega ao seu apartamento em ruínas, ela está escovando os dentes; ela então, cospe nele e, quando se aproxima, ele a puxa pelos cabelos limpando o seu rosto), apenas um acordo do qual ambos tiram vantagens: ela consegue o que quer, inclusive passe livre pelas ruas de Berlim; e ele... Bom, ele consegue Marlene Dietrich!
A atriz ainda demonstra toda sua sensualidade nas cenas em que canta no cabaré. Não são músicas alegres e que servem como diversão; são canções que transmitem a dor causada pela guerra, além de ilustrar o estado deplorável a que uma grande cidade - e seus habitantes - foi reduzida.
Claro que no final há o 'happy ending' - afinal de contas, Wilder estava produzindo em Hollywood - mas o cineasta orquestra-o com humor, numa rima visual engraçada e elegante. Mas o que vale mesmo é o seu 'recheio', que, a todo momento, caminha em uma tênue linha entre a comédia despretenciosa e a dura crítica à hipocrisia dos costumes e organizacões (Congresso e Exército) norte-americanos, além de sua visão política nada gentil a respeito dos alemães. Tudo, é claro, temperado com aqueles diálogos 'wilderianos': inteligentes, ácidos e hilários.
Enfim, "A Mundana" pode não ser uma obra-prima de Billy Wilder, mas certamente é mais uma de suas ótimas e deliciosamente críticas comédias.
Fica a dica!
por Melissa Lipinski
Há que se considerar que o filme foi feito em 1948 - com a Segunda Guerra Mundial tendo terminado há cerca de três anos, e suas 'feridas' e destroços ainda totalmente escancaradas, além do fato de os norte-americanos serem 'os heróis' da guerra; dito isto, a produção torna-se até mais ousada do que parece à primeira vista, já que o roteiro de Wilder, Charles Brackett e Richard L. Breen é uma ácida sátira à moral estadunidense.
O roteiro tampouco poupa acusações sobre os alemães (também há que se levar em conta que Wilder era judeu, e muitos de sua família morreram durante a Segunda Guerra), ainda que os fascinates olhos de Marlene Dietrich desafiem-nos (a nós, espectadores) a julgar a ela e a seu povo. Pois como ela mesmo diz em um momento do filme: "Ainda estamos destruídos demais para sermos solidários".
Mas vamos à trama: Phoebe Frost (Jean Arthur) é uma congressista dos Estados Unidos que, junto com um grupo de congressistas, vai a Berlim para analisar a conduta moral dos soldados norte-americanos. Durante tal inspeção, ela acaba descobrindo que um oficial estadunidense tem um caso com uma cantora de cabaré ex-filiada ao partido nazista, Erika von Schluetow (Dietrich). Acontece que a congressista será auxiliada em sua invertigação pelo capitão John Pringle (John Lund), justamente o oficial a quem procura, e que, para tentar despistá-la e dissuadi-la de sua missão, tentará seduzi-la.
John Lund empresta cinismo e a dose certa de mau caratismo ao capitão Pringle. Apenas para ilustrar, ele é capaz de trocar no mercado negro um bolo de aniversário (que Phoebe Frost trouxe dos EUA enviado por uma antiga namorada dele) por um colchão para Erika. Não consigo imaginar um presente menos sutil e significativo. Lembrem-se que, nessa época, Hollywood ainda encontrava-se sob a severa conduta do Código Hays que pregava toda e qualquer 'preservação' dos bons costumes, não se podia, por exemplo, mostrar - e nem mesmo insinuar - qualquer tipo de relação sexual entre os personagens. Claro que o 'bom e velho' Wilder (assim como muitos outros diretores faziam) usava de cinismo e inteligência para driblar tal código (como o exemplo que acabei de citar).
Tal crítica à 'ilibada' moral estadunidense também está na caracterização da personagem de Jean Arthur: seus figurinos e penteados são extremamente duros e puritanos, em contraponto à sensualidade e feminilidade que exalava de Marlene Dietrich. O único momento em que Phoebe torna-se mais 'feminina' é justamente quando compra um vestido alemão, mais ousado, e acaba se soltando de suas 'amarras morais' ao beber champagne em um cabaré. É Wilder alfinetando mais uma vez, como que mostrando todo o embuste contido na tão alardeada moral americana (e que ainda vemos hoje em dia, não só nos filmes).
E Jean Arthur compõe sua Phoebe Frost com o ar necessário de puritanismo, pragmatismo e organização, sem cair na armadilha de deixá-la antipática ao público. A cena em que sua personagem é apresentada ilustra bem isso: sobrevoando Berlim no avião que está levando os congressistas até lá, ela, com uma meticulosa calma, guarda seus óculos e pertences para só depois dirigir-se à janela para ver a cidade em ruínas. A graça da cena dá-se pelo contraste: de um lado a paciência da personagem, de outro, a pressa do espectador em vê-la progredir em suas ações.
Mas o filme é mesmo de Marlene Dietrich. É como se ela possuísse um íma que atrai todo e qualquer olhar. Ela é a senhora absoluta das cenas em que aparece. Sua Erika não é uma mulher romântica (como a sua 'rival' estadunidense), ela é uma sobrevivente. E, para continuar assim, faz qualquer tipo de acordo, como o relacionamento que mantém com o capitão Pringle. Não há romance entre eles (e a cena na qual conhecemos Erika demonstra isso: quando John chega ao seu apartamento em ruínas, ela está escovando os dentes; ela então, cospe nele e, quando se aproxima, ele a puxa pelos cabelos limpando o seu rosto), apenas um acordo do qual ambos tiram vantagens: ela consegue o que quer, inclusive passe livre pelas ruas de Berlim; e ele... Bom, ele consegue Marlene Dietrich!
A atriz ainda demonstra toda sua sensualidade nas cenas em que canta no cabaré. Não são músicas alegres e que servem como diversão; são canções que transmitem a dor causada pela guerra, além de ilustrar o estado deplorável a que uma grande cidade - e seus habitantes - foi reduzida.
Claro que no final há o 'happy ending' - afinal de contas, Wilder estava produzindo em Hollywood - mas o cineasta orquestra-o com humor, numa rima visual engraçada e elegante. Mas o que vale mesmo é o seu 'recheio', que, a todo momento, caminha em uma tênue linha entre a comédia despretenciosa e a dura crítica à hipocrisia dos costumes e organizacões (Congresso e Exército) norte-americanos, além de sua visão política nada gentil a respeito dos alemães. Tudo, é claro, temperado com aqueles diálogos 'wilderianos': inteligentes, ácidos e hilários.
Enfim, "A Mundana" pode não ser uma obra-prima de Billy Wilder, mas certamente é mais uma de suas ótimas e deliciosamente críticas comédias.
Fica a dica!
por Melissa Lipinski
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