sábado, 14 de janeiro de 2012

Farrapo Humano

ATENÇÃO: O texto pode conter citações sobre o desenrolar do filme. Caso não tenha visto o filme ainda, tenha cuidado ou o leia após assisti-lo.

Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945)

Estreia oficial: 16 de novembro de 1945
IMDb



Comprovando sua extrema versatilidade - o cineasta já havia realizado uma comédia, um drama de guerra e um filme noir - Billy Wilder mostra sua incrível capacidade em conduzir diferentes gêneros com a mesma habilidade, ao escolher como seu quarto filme nos Estados Unidos um drama sobre o alcoolismo.

O roteiro, escrito por Wilder e Charles Brackett (a partir do romance homônimo de Charles R. Jackson), narra o desespero de um escritor alcoólatra, Don Birman (Ray Milland), em sua busca por bebidas durante um final de semana (prolongado, é verdade, já que, na cronologia do filme, passam-se cinco dias), e as consequências assustadoras e degradantes a que ele é levado.

Quando encontramos Don, ele está arrumando suas malas para uma viagem (contra a sua vontade) com seu irmão Wick (Phillip Terry). Porém, quando é deixado por algumas horas sozinho, Don não consegue resistir à tentação, e acaba bebendo em um bar, atrasando-se para pegar o trem. Wick então, já desacreditado do irmão, viaja sozinho, deixando Helen (Jane Wyman), namorada de Don, sozinha em sua tentativa de livrá-lo de seu vício.

Contando com uma ótima introdução, "Farrapo Humano" (péssimo título nacional!) tem início com um grande plano geral de Manhattan, que vai fechando até a janela de um edifício onde vemos uma garrafa pendurada do lado de fora de uma janela. Então começamos a escutar a conversa de Don e seu irmão sobre a viagem ao campo. Quando a câmera adentra ao apartamento, vemo-los arrumando as malas e, devido à construção da cena e diálogos de Wilder, logo no primeiro plano de Don, já descobrimos que ele é um alcoólatra recorrente e que é sua a tal bebida escondida na janela. Tudo isso em menos de cinco minutos de filme, e sem que isso seja dito 'escancaradamente'! Apenas pelas insinuações de seu irmão e os olhares de Don.

Como não poderia deixar de ser em um filme do cineasta, a trama é repleta de diálogos inteligentes, com duplos sentidos e uma ironia e sarcasmo tipicamente 'wilderianos'. O que é novidade entretanto aqui, é o uso de efeitos visuais que o diretor faz para complementar a sua narrativa. Dois momentos se destacam: primeiro quando Don está assistindo a uma ópera e, ansiando por um gole de bebida, vê no lugar dos atores, uma fileira de casacos (ele havia deixado uma garrafa no bolso do seu sobretudo); e depois, já consumido pelos efeitos degradandes do álcool, vê, em um delírio, um morcego comendo um rato que saía de um buraco da parede de seu apartamento, num momento de puro horror.

A história é toda arquitetada ao redor do personagem de Ray Milland (ele aparece em quase todas as cenas do filme), e a sua atuação não decepciona. Mostrando com extrema eficácia a degradação de seu personagem, Milland consegue marcar fisicamente a diferença entre o Don sóbrio e o alcoolizado. Mas é sua expressão 'de loucura' e desespero que mais impressiona, e sua constante situação deplorável faz com quem sintamos pena dele. O ator ainda consegue fugir da armadilha de transformar seu personagem em alguém antipático ao público, já que sua auto-piedade e insistência em recorrer num vício do qual tem consciência dos efeitos que lhe causam, muito bem poderiam afastá-lo do espectador. Porém, seu carisma consegue fazer com que, por mais auto-destrutivo que ele se mostre, torçamos pela sua recuperação.

Utilizando flashbacks para que conheçamos melhor quem realmente é o protagonista, é justamente nesses momentos que o filme de Wilder tropeça em seu ritmo, tornando-o mais lento, ainda que gere ótimos momentos.

Contando ainda com uma bela fotografia de John F. Seitz, principalmente nas cenas mais dramáticas, onde a proximidade de sua câmera enfatiza os efeitos alcoólicos de Don; e uma ótima trilha musical de Miklós Rósza, cujos acordes dissonantes (que muitas vezes lembram aqueles efeitos sonoros de filmes de alienígenas) intensificam o desespero e agonia sofridos pelo protagonista; "Farrapo Humano" é admirável pela crueza e objetividade com as quais Billy Wilder conduz a sua narrativa, criando momentos de puro horror psicológico, mas de beleza visual, mostrando seu total domínio da técnica cinematográfica.

Realizado em um momento da história do cinema estadunidense onde as histórias passaram a enfocar críticas à sociedade ou personagens amorais, devido à grande depressão econômica que haviam passado na década anterior e também à Segunda Guerra Mundial, o filme de Wilder ainda hoje impressiona pela sua dureza. E, ainda que muitos possam dizer que há um 'happy ending', questiono-me por quantos desses finais felizes o personagem de Ray Milland já havia passado anteriormente. Será mesmo que aquele será o fim de seu vício? E tenho certeza que o final feliz deixado por Wilder está ali como (mais uma) forma de provocação.

Afinal, não são assim os melhores filmes? Aqueles que, mesmo tempos depois de assistidos, ainda conseguem nos provocar reflexões e questionamentos?

Fica a dica!


por Melissa Lipinski


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