sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Não Por Acaso

ATENÇÃO: O texto pode conter citações sobre o desenrolar do filme. Caso não tenha visto o filme ainda, tenha cuidado ou o leia após assisti-lo.

Não Por Acaso (2007)

Estreia Oficial | no Brasil: 7 de junho de 2007



“Não Por Acaso”, primeiro longa de Philippe Barcinski, utiliza-se de pessoas cujas rotinas baseiam-se em controle e precisão para provar que essas coisas inexistem na vida. Ao colocar tais indivíduos em situações incontroláveis, o diretor tenta mostrar o quão inútil é o esforço de tentar represar as mudanças que o acaso reserva para qualquer um.

O filme narra de forma paralela duas histórias passadas em São Paulo. Ênio (Leonardo Medeiros) é um engenheiro de trânsito que ainda nutre sentimentos por sua ex-esposa, Mônica (Graziela Moretto). Esta tenta reuni-lo com Bia (Rita Batata), sua filha que ainda não conhece. Já Pedro (Rodrigo Santoro) é um marceneiro especializado em construir mesas de sinuca e um hábil jogador do esporte. Ele é feliz em seu trabalho e em seu relacionamento com Teresa (Branca Messina), jovem de classe econômica mais alta que acabara de se mudar para o humilde apartamento do namorado, após alugar seu grande apartamento para Lúcia (Letícia Sabatella), uma analista de investimentos. As vidas destas pessoas irão se interligar e mudar após um trágico acidente de carro.

A metáfora com as profissões das personagens é óbvia. Pedro e Ênio, cada um em seu ofício, contam com a precisão, a meticulosidade e o controle. Porém como na sinuca ou no trânsito, uma mera colisão altera tudo que havia sido planejado. Algo que também se nota na personagem de Lúcia – uma mulher estressada e muito envolvida com sua carreira e que começa a se questionar quando uma transação da qual era responsável dá errado. Diferentemente do que estavam acostumados – seja na vida pessoal ou profissional – a previsibilidade que regia suas vidas acaba indo por água abaixo e as personagens descobrem a impotência diante das mudanças de rumo que o acaso trágico lhes reservara.

A narrativa de “Não Por Acaso” lembra os filmes de Alejandro Gonzalez Iñarritu, principalmente “Amores Brutos” e “21 Gramas”, onde um único acontecimento (também acidentes de trânsito) desencadeiam conseqüências na vida de algumas personagens, em tramas paralelas e distintas, mas com algumas semelhanças.

Apesar das personagens extremamente bem construídas (e, diga-se, muito bem interpretadas principalmente por Leonardo Medeiros e Rodrigo Santoro), o que se sobressai na narrativa de Barcinski é o seu esmero técnico, especialmente no que diz respeito à fotografia e à montagem. Isto fica especialmente evidente nas cenas de sinuca (no caso de Pedro) e nos planos gerais que mostram o trânsito da capital paulista fluindo (no caso de Ênio). Nos dois casos, o diretor ilustra com perfeição os dois homens em plenitude do exercício da obsessão que nutrem por controle. Pedro anota e desenha as jogadas futuras que fará em seu caderno de bolso, treinando duro para reproduzi-las com perfeição – e as cenas que mostram como ele pensa as jogadas antes de executá-las são o exemplo vivo de que se pode sim ter um filme bem editado (inclusive com efeitos especiais) realizado no Brasil. Já Ênio, faz e desfaz congestionamentos rapidamente, fazendo seus complicados cálculos matemáticos parecerem simples para qualquer ‘mortal’ – em uma das seqüências (talvez a mais impressionante do longa), vê-se, através de um plano do alto, um engarrafamento de várias ruas se formando, após o simples digitar de um número ordenado pelo personagem.

Assim como seus personagens (Philippe Barcinski é co-autor do roteiro, juntamente com Fabiana Werneck Barcinski e Eugenio Puppo), o diretor também tenta evitar a interferência do acaso e controlar todos os detalhes do filme. Dá para sentir o dedo do cineasta em cada seqüência, em cada palavra dita pelos atores. Mesmo assim, como nas vidas de Pedro e Ênio, o acaso teima em se manifestar. Um filme nunca resulta exatamente naquilo que o diretor quer que ele seja (a não ser que falemos de Alfred Hitchcock). Como seus dois protagonistas, Barcinski não consegue evitar as armadilhas do caos – e é aí que o excesso de técnica, apesar de muito bem dominada, revela-se como um defeito do filme.

Esse excesso ‘rouba’ o calor humano das personagens, transforma a narrativa do longa em algo frio, inerte. Apesar das personagens cumprirem jornadas idênticas, voltando a se embriagar com a vida, “Não Por Acaso” não consegue ser totalmente bem sucedido na tarefa de envolver o espectador emocionalmente na trama. Há uma barreira entre história e público. Barreira esta que o diretor tenta quebrar com o uso quase ininterrupto de música, a qual acaba dando ao filme um tom artificial, de melodrama. Talvez fosse essa a intenção de Barcinski, mas mesmo assim, ela quebra com a unidade do filme. O resultado final acaba por se tornar mais mecânico, como se o cineasta procurasse o controle absoluto e construísse um engenhoso jogo de montar, com sistemas interessantes de semelhanças, oposições e paralelismos. Porém, o excesso de equivalências e o esquematismo com que a narrativa é conduzida também o deixam facilmente desmontável. Faltou um mergulho mais fundo na subjetividade dos seus personagens – que é sugerida, mas pouco desenvolvida.

Pecadilhos dentro deste belíssimo filme! Fica a dica!


por Melissa Lipinski




** Texto originalmente escrito em 2007, durante o Curso de Graduação em Comunicação Social - Cinema e Vídeo, para a disciplina de Comunicação Comparada.

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